A reunião de família seguia com tranquilidade, era o casamento da sobrinha mais velha. Até que alguém levantou o assunto e… pronto! Aconteceu o que vem acontecendo nos últimos dias entre brasileiros “anti” e “pró”: o debate começou, as vozes se alteraram, o clima de festa foi se tornando cada vez menos festivo. O pior: nem vale a pena repetir aqui os argumentos de um e de outro grupo, porque foram pouco alicerçados em teorias ou na leitura correta dos programas de governo dos dois candidatos. As falas se baseavam em premissas encontradas de maneira furtiva, num rápido olhar pelo “zap”, ou em outras redes sociais eivadas de fake news.
Fiz o que qualquer cidadão comum pouco afeito a debates fla x flu, que não agregam e não necessariamente são ouvidos por ambas as partes envolvidas, faria: saí da sala. Fui caminhar, respirar. Procurei refletir além: tudo isso vai passar daqui a pouco. Segui pensando que estou precisando mesmo é de fazer contato com terra, com água gelada, bichos ao redor, uma cachoeira.
Eis que, num outro cômodo da casa de festas enfeitada para o evento, tinha uma espécie de decoração “natural”, com madeiras imitando troncos de árvores, algumas esquálidas plantas de plástico, grãos no chão para se assemelhar a uma floresta e algumas fotos de natureza morta. Preferi ficar ali do que voltar para o lugar do embate.
Entre as fotos, uma delas me cativou por causa do olhar de um indígena, que expressava uma sabedoria infinita. Algumas etnias já se posicionaram a favor do candidato à presidência que mais zela pelas minorias, mas gostei de imaginar que, se estivessem ali naquele instante, indígenas não cederiam à tentação de deitar palavras ao vento, sem sentido, como faziam meus familiares no cômodo contíguo.
Tenho um profundo respeito por esses povos e por tudo o que representam os indígenas, pelo fato de viverem de maneira tão intrínseca com a natureza a ponto de respeitarem cada detalhe de seus humores. São eles que, sem precisar se reunir em fóruns ou assinar acordos e tratados internacionais, demonstram no dia a dia que é possível preservar o meio ambiente. E são tão pouco ouvidos pelos grandes especialistas de clima sobre o aquecimento global…
Nesta linha, sugiro a vocês que assistam o documentário “Antes da chuva” , dirigido por Otávio Almeida e lançado pelo Instituto Socioambiental em junho, é emocionante. Outra produção cinematográfica envolvendo os indígenas que dá gosto de assistir é “Para onde foram as andorinhas”, de Paulo Junqueira.
“Quando as cigarras começam a cantar, sabemos que daqui a três dias vai começar a chover. É tempo de plantar batata doce, abóbora, amendoim, cará, pimenta, algodão. Mas as cigarras não estão cantando mais porque o calor secou os ovos delas”, lamenta o indígena ouvido.
É dessa relação intrínseca com a natureza que me refiro, possivelmente com uma grande dose de inveja. Sou citadina, vivo o tempo todo no asfalto, respirando ar impuro, e quando consigo escapar para uma região de serra é que percebo a falta que me fazem o contato com a terra, com água pura, com bichos. Mas, ao mesmo tempo, é difícil me imaginar fazendo esta opção radical de moradia. Fico, portanto, sempre me devendo esses pequenos grandes prazeres.
Dito isso, cheguei em casa, da reunião familiar, e vim direto para o computador, já refletindo a respeito, buscando notícias sobre indígenas para costurar meus pensamentos. E foi com um total sentimento de desânimo com os rumos que a humanidade está traçando para si própria no planeta, que só encontrei informações dramáticas. O último relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), publicado no mês passado, dá conta de que a violência contra estes povos, no Brasil, tem um aumento sistêmico, contínuo. Os dados são de 2017:
“Houve um aumento no número de casos em 14 dos 19 tipos de violência sistematizados no “Relatório Violência contra os povos indígenas no Brasil” publicado anualmente.Em três tipos de violência foram registrados a mesma quantidade de casos que no ano anterior; e apenas em dois tipos de violência houve menos casos registrados que em 2016. As informações sistematizadas evidenciam que continua dramática a quantidade de registros de suicídio (128 casos), assassinato (110 casos), mortalidade na infância (702 casos) e das violações relacionadas ao direito à terra tradicional e à proteção delas”, diz o estudo.
Invasões de terras; roubo de bens naturais, como madeira e minérios; caça e pesca ilegais; contaminação do solo e da água por agrotóxicos e incêndios estão entre as ações criminosas cometidas por brancos contra os povos ancestrais, aqueles que chegaram primeiro por aqui. Intimidam os indígenas, pelo simples fato de se sentirem superiores, acredito eu. O relatório traz o caso do povo Karipuna, em Rondônia:
“Quase extintos na época dos primeiros contatos com a sociedade não indígena, nos anos 70, os Karipuna não podem caminhar livremente pelo seu território, homologado em 1998. Além do aprofundamento da invasão da Terra Indígena Karipuna desde 2015 para o roubo de madeira, a grilagem e o loteamento são outros crimes que vêm sendo, insistentemente, denunciados pelo povo aos órgãos do Estado brasileiro e até mesmo na Organização das Nações Unidas (ONU)”, diz o estudo.
Por outro lado, sim, a comunidade indígena anda mostrando que não é forte apenas na relação com o meio ambiente. Com 130 candidatos de diferentes etnias espalhados pelo país, e com Sônia Guajajara assumindo a candidatura a vice-presidência no Partido da Solidariedade (Psol), estes povos, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) comemora a eleição de Chirley Pankará pela bancada ativista de São Paulo e de Joênia Wapichana, eleita Deputada Federal pelo estado de Roraima.
E a um só tempo que comemora suas vantagens conseguidas no primeiro turno das eleições, ilustrando a entrada cada vez mais ordenada dos povos indígenas na política nacional, a Apib lança um manifesto pela democracia que, novamente, dá um banho de sabedoria nos não índios.
“A nossa jovem democracia está longe de ser apenas um valor imaterial, ela retrata a soberania popular no respeito à reivindicação e proteção dos direitos do cidadão, pois é nela que construímos os verdadeiros laços de solidariedade ao próximo”, diz o texto.
No fim das contas, é bem isso. A solidariedade ao próximo é o que anda em falta entre nós. Um grande pensador da atualidade, o geógrafo Milton Santos, que conquistou em 94 o Prêmio Nobel de Geografia, costumava lembrar sempre em suas palestras que o sistema econômico atual, baseado no acúmulo de capital, tirou das pessoas a capacidade de serem solidárias, praticamente baniu do nosso dicionário esta palavra.
Mas ainda há tempo para repensar a respeito, é no que eu acredito.