Moradores reclamam de falta de peixes e de dificuldade de acesso à água. Limpeza de usina hidrelétrica, situada na bacia do rio, continua sendo desafio.
De um lado, o Rio Piranga segue seu curso com águas esverdeadas. Do outro, o alaranjado sem vida do Rio do Carmo, pouco a pouco, impregna a paisagem de uma margem a outra. No ponto em que o Rio Doce é formado, sinais da maior tragédia ambiental já ocorrida no Brasil são evidentes. Três anos após o desastre de Mariana, na Região Central, o mato que cresce beira-rio disfarça a presença do rejeito de minério, mas a lama vinda da barragem da Samarco ainda está lá.
A maior parte da vida de José Márcio Lazarini, de 47 anos, foi dentro do rio. Mas, desde novembro de 2015, o morador da cidade de Rio Doce, na Zona da Mata mineira, nunca mais entrou nas águas onde estão suas raízes. Ao pescador e garimpeiro, faltam palavras para descrever o sentimento de ver sua felicidade e um dos principais cursos d’água do país devastados; sobra emoção.
De acordo com a Fundação Renova, é realizado o monitoramento da fauna e floras terrestres de toda a bacia do Rio Doce. “Esse estudo, vai identificar, descrever e reparar os impactos provocados pelos rejeitos. Entre abril de 2017 e abril de 2018, foi feito o monitoramento populacional dos peixes em uma extensão de 670 km entre a Mariana e a foz do rio Doce. Foram 41 pontos de amostragem. Os resultados, em análise, devem apontar se houve diminuição na população de peixes nesta área, inclusive no município de Rio Doce”, informa a entidade por meio de nota.
Como estar com sede em pleno mar
Pelo relato de quem vive na região, Sem-Peixe bem que podia ser o apelido do rio por aquelas bandas. Mas o nome curioso batiza outra cidade da Zona da Mata do estado, que não fazia jus à alcunha, de acordo com a aposentada Maria José Ventura, de 76 anos.
“Não voltou peixe mais, não. Não tem peixe nesse rio. Os outros falam: ‘mas já deve ter’. Que deve ter o quê? Não tem nada, não. Você leva um anzol para pegar um lambari para ver se tem um lambari, não tem nada. Nada, nada. E se tiver também, a gente não tem coragem de comer porque a gente não sabe o que pode acontecer”, diz.
Na cidade com cerca de 3 mil habitantes, cuja zona rural margeia o Rio Doce, a sensação é de se estar com sede dentro do mar. Apesar da fartura de água, moradores sabem que consumir uma de gota sequer, não é possibilidade.
Aparecida Helena Miranda Paiva Rodrigues é chefe do Departamento de Assistência Social de Sem-Peixe e também atingida pela tragédia. “Todos nós usávamos essa água do rio. Todos ribeirinhos usavam para quê? Para irrigar plantação, para o gado tomar água. Quando passou essa lama, nem o gado tomou mais”, afirma.
Aparecida é produtora rural e, três anos após a tragédia, ainda sofre as consequências da devastação do Rio Doce, que era de onde vinha a água para tratar sua criação. Ela afirma que um poço semiartesiano foi construído em sua propriedade como forma de amenizar a situação.
“Mas ele está com problema. Já conversamos, já ligamos para auditoria. Eles não dão resposta porque a bomba não funciona. A gente tem vários protocolos. Como eu tenho que remanejar o gado, que é muito, eu tenho que pagar um diarista – tem mais de dois meses que eu fazendo isso – para ficar remanejando o gado para levar para outros lugares para tomar água. É um desassossego”, reclama.
Na casa de Maria José, que vive na comunidade de Camões, também foi preciso construir um poço. Ela se lembra dos tempos em que podia desfrutar da fartura de água, logo nos fundos de casa.
“Atrapalhou muito, muito, muito mesmo. A gente fica assim, tem hora que a gente fica parado assim e pensa: ‘isso aconteceu comigo, isso aconteceu com nós? Tantos anos que eu moro aqui’. Cinquenta e sete anos não são 57 dias, já pensou? Então, foi muito difícil”, desabafa.
Maria José diz que não pode reclamar do poço artesiano construído no terreno dela, mas, segundo ela, os dois vizinhos do lado não tiveram a mesma sorte. Ela conta que, 36 meses após a tragédia, o abastecimento na casa deles ainda é feito por meio de caminhão-pipa.
Segundo a Fundação Renova, uma equipe de um dos programas da entidade busca soluções definitivas para a melhoria das condições de abastecimento de água em Camões. “Já estão em análises possíveis alternativas para a substituição no atual sistema de abastecimento via caminhão-pipa. Durante esse período de análises, o abastecimento não será interrompido antes que uma solução definitiva seja implementada”, afirma a fundação.
Candonga
Segundo a fundação, nestes três anos, foram definidas as ações de manejo para os trechos que correspondem ao traçado de Mariana até o limite de Barra Longa. Seguindo o trajeto do “mar de lama”, logo está a cidade de Rio Doce. “Rejeito ainda tem bastante”, diz José Márcio, que viu a paisagem de onde cresceu se transformar.
A cerca de 15 quilômetros do centro da cidade, encontra-se um dos principais desafios da Fundação Renova: a Usina Hidrelétrica Risoleta Neves, conhecida como Candonga.
A estrutura da usina serviu de barreira para parte da lama que atravessou um trajeto de cerca de 600 quilômetros entre Mariana e oceano, no Espírito Santo. De acordo com a fundação, dos aproximadamente 51 milhões de metros cúbicos de lama que vazaram da barragem, mais de 10 milhões de metros cúbicos ficaram depositados no reservatório da usina.
Segundo o líder de Projetos e Obras da Fundação Renova em Candonga, Guilherme Bechara, nestes três anos, o total de lama retirado corresponde a cerca de 10% da quantidade retida no local. “Nós já dragamos aproximadamente 900 mil metros cúbicos de rejeito dos primeiros 400 metros da usina hidrelétrica”, afirma.
As atividades de Candonga estão interrompidas desde novembro de 2015 e, para que a usina volte a operar, ainda será necessária a retirada de mais 1 milhão de metros cúbicos de rejeito. “A nossa expectativa é que, durante o ano de 2020, a gente volte a encher o reservatório e o retorno operacional da usina”, diz.
A lama removida será depositada em zonas de empilhamento, em uma área conhecida como Fazenda Floresta. A previsão inicial era que o material fosse dragado por tubulações para um dique intermediário, que serviria de apoio para o dique principal, onde o rejeito será drenado.
Entretanto, uma trinca no terreno fez com que as obras fossem impactadas, e a definição sobre a construção da estrutura intermediária dependerá de estudos feitos pelas equipes da fundação. A falha é monitorada em tempo real, durante todo o dia, por radares.
Ele garante que a trinca não representa riscos para comunidade do entorno de Candonga nem para o meio ambiente. Agora, são tomadas medidas para que o rejeito já removido não volte para o Rio Doce com as chuvas dessa época. “Como esta estrutura [dique] era prevista e planejada ficar pronta neste ano, nós optamos em criar estruturas que possibilitassem que a gente passasse pelo período chuvoso de 2018/2019 de uma maneira segura”, diz.
As dragas usadas para remover a lama do reservatório estão paradas. Segundo Bechara, a expectativa era que, a partir de agosto, o dique intermediário já recebesse o rejeito. Conforme o líder de Projetos e Obras da Fundação Renova em Candonga, o cronograma corre o risco de mais uma vez atrasar.
Para o restante da lama que não for removida até o retorno das operações da usina, ainda não há uma solução definitiva. “Essa decisão não cabe à Fundação Renova. A Fundação Renova vai encaminhar ao CIF [Comitê Interfederativo] a solução técnica para o restante do material a ser retirado após o enchimento do reservatório, e essa deliberação do CIF é que vai determinar para nós qual o volume vai ser retirado do reservatório”, explica.
Esperança que se esvai
Enquanto o meio ambiente espera por ações concretas, a esperança de, um dia, ver o Rio Doce recuperado vai se esvaindo.
“Eu não [tenho mais esperança de ver o rio limpo]. Só se os mais novos virem. Eu já estou de idade, eu não tenho mais esperança mais de ver”, lamenta Maria José.
Para José Márcio, ainda é sonho que o rio volte a fazer parte de sua rotina. “Eu fico olhando para esse rio, chega dia de domingo, eu saio, eu rodo, rodo esse rio todo. Chego em casa, pego meu material de pesca, fico olhando assim, pensando assim: ‘quando? Ou será que eu vou ter que ir para um pesqueiro? Ou será que eu vou ter que pagar um dinheiro alto para ir no Mato Grosso ou na Amazônia pescar um peixe que eu pegava pelo rio?”, questiona.
FONTE: G1