Olhando para os caminhos já percorridos pela professora Vanderlan Bolzani, 68, é possível compreender que ela levou ao pé da letra a orientação dado por seu pai desde a infância.
“Meu pai sempre falou: ‘Meus filhos não são filhos de coronéis, então têm de ser letrados’. Ele era quase semianalfabeto, mas de uma inteligência brilhante. E isso vale para a nossa sociedade de hoje”, afirma.
Pesquisadora do Instituto de Química da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e vice-presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), ela falou à reportagem do UOL sobre a queda de investimentos públicos na área da ciência e tecnologia, os desafioa para o próximo presidente eleito e o que a levou a “fugir” das bonecas para se aventurar, criança, em outras brincadeiras.
De acordo com a SBPC, o orçamento para Ciência e Tecnologia teve um corte drástico em 2018, em comparação aos anos anteriores: começou o ano 25% menor em relação a 2017 e ainda encolheu mais 10% nos primeiros meses do ano, chegando ao valor de R$ 4 bilhões. Em 2013, os recursos para esta área somavam R$ 8,4 bilhões.
Em agosto, a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) anunciou que poderá haver corte de 200 mil bolsas de estudo em 2019, caso o governo federal mantenha como está a proposta de orçamento para a entidade.
Desde 2016, foi incorporada outra pasta ao Ministério da Ciência e Tecnologia, que passou a se chamar MCTIC –Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações–, o que provocou repúdio e queixas por parte das organizações que representam cientistas e pesquisadores. Confira, a seguir, os principais trechos da conversa com a cientista.
UOL – A senhora afirma que está no caminho errado um país que acha que ciência é custo. Pode comentar?
Vanderlan Bolzani – Num mundo onde se trocam músculos por cérebros, temos no conhecimento a ferramenta mais preciosa para o desenvolvimento econômico e a melhoria social. Isso é o que acontece nas nações desenvolvidas. Percebendo que conhecimento gera riqueza, quanto mais se investe, maior a possibilidade de gerar produtos de alto valor agregado, de ser competitivo. O Brasil começa a ter o seu sistema de educação, pesquisa e tecnologia organizado com a criação da Capes e do CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), nos anos 1950. E quando começa a organização das indústrias e daquilo que gera riqueza no país? Na época Getúlio Vargas, quando foram criadas as primeiras metalúrgicas no Sudeste, algumas [empresas] agrícolas e a Petrobras.
Em fontes renováveis de energia, nós somos um país respeitado no mundo; em alguns problemas de endemias também, como o caso zika, por exemplo. Nós temos uma ciência que evoluiu com o trabalho de muitos cientistas e de muitos políticos que acreditavam que só se constitui uma nação robusta com ciência e tecnologia.
Em 2012, chegamos a quase R$ 9 bilhões para o orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Isso vem caindo e chega a 2018 em torno de R$ 3,2 bilhões. E agora você não tem mais o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Temos um ministério que tem outra pasta no meio, chamada de Comunicação. São dois ministérios, e a verba enxugou de forma drástica. É muito triste ver que o país tem uma vertente forte que manda no destino da nação acha que educação, ciência e tecnologia é custo, não é investimento.
No começo de agosto, a Capes informou, em nota pública, que 200 mil bolsas de estudo podem ser suspensas a partir de 2019, caso o governo federal mantenha a proposta orçamentária sugerida à entidade para o ano que vem. Como a senhora recebeu este comunicado?
Eu fiquei muito assustada. É um momento em que os reitores das estaduais e das federais deveriam se manifestar. A pós-graduação fez um diferencial enorme para as universidades públicas federais e estaduais, que é onde se realiza a pesquisa de qualidade neste país.
Quando o presidente da Capes faz um manifesto falando que no próximo ano não haverá bolsas, e o presidente [da República rebate] falando que vai ter bolsas, só que no próximo ano este presidente não está mais aí. E quem define a política econômica, o Ministério da Fazenda, não tem compromisso com aquilo que dá riqueza a um país, que é a sua educação sólida em todos os níveis, ciência e tecnologia.
A impressão que dá é que aqui [no Brasil] tem uma oligarquia pequena de milionários querendo um país de analfabetos absolutos e escravos e que trabalhem como mão de obra barata. Que sejam massas de manobra, porque um povo que não é educado é massa de manobra para político. Você só estuda com bolsa, a não ser que seja filho desses milionários aí, de coronéis.
O que a senhora sugeriria para o próximo presidente da República?
O próximo presidente do Brasil deveria ser compromissado e tentar, junto com pessoas dignas e honestas, que não desviam dinheiro público, fazer uma agenda de prioridade de educação, ciência, tecnologia, inovação e segurança para o Estado brasileiro. Precisamos de um programa mínimo do Estado brasileiro. Seja o governo A ou o governo B, não importa. Porque cada governo faz suas agendas, promete mundos e fundos, e o próximo [governo] é capaz de destruir o que o anterior fez para mostrar que pode ser “melhor”. Isso é escoamento de dinheiro público.
Governar um país como o Brasil não é uma tarefa simples. É um país continental, regional, com muitas diferenças. Chegamos a um nível de desenvolvimento que nós não merecemos retroceder.
Somos o maior exportador de soja do mundo. Para produzir a soja que o Brasil tem hoje, se fez muito investimento em ciência e tecnologia. Fixação de nitrogênio [que interfere na produtividade] é uma coisa fascinante. Houve uma quantidade de trabalhos [científicos] gerados. São produzidas toneladas de soja, mas veja quantos chips de computador são comprados. A balança econômica não fecha. E aí, para fazer superávit primário, começa-se a congelar aquilo que tem de mais precioso no país, que é a sua educação, a sua segurança e a sua ciência e tecnologia.
Banco não traz riqueza para o país, banco guarda a riqueza que é produzida. Na hora em que você não tem mais uma indústria robusta de alta tecnologia e você tem uma sociedade com salários baixos –que é isso o que gera uma sociedade que não tem uma industrialização baseada em alta tecnologia, a circulação de renda de pessoal altamente capacitado –, você tem uma estratégia que nós estamos vivendo agora. Há uma minoria que gasta muito, mas isso não é suficiente, somente para essa minoria.
O [atual] presidente da República congelou por 20 anos os investimentos. A justificativa é que o país está descapitalizado e não tem dinheiro. Quando você congela por 20 anos prioridades em uma nação, como saúde, educação, segurança, é uma coisa estapafúrdia e não dá para acreditar. Se isso acontecesse num país onde as pessoas tivessem noção, com certeza toda a sociedade estaria reivindicando. Nós somos ainda muito ignorantes. E uma crítica grande é que a ascensão econômica não levou a uma ascensão de escola, de entendimento. É o que eu chamo de analfabetos funcionais. Isso é grave para o país.
Como evitar que um governo desfaça o que anterior fez de bom?
Tem muitos fatores envolvidos. Uma sociedade minimamente instruída vota melhor. É extremamente importante que você tenha os representantes do povo com um olhar de não legislar para seus interesses pessoais, mas para uma comunidade maior. Uma política que olhe para o seu desenvolvimento industrial baseado em tecnologia. Não adianta ter investido tanto em ciência para ter uma soja altamente produtiva, se toneladas de soja valem alguns produtos como chips de computadores, quando a gente faz essa balança econômica. Vamos estar sempre devendo.
O grão é muito importante, vamos continuar exportando, mas por que não tem alguma indústria para fazer isoflavona* de soja? E aí não é só exportar soja, mas exportar o produto manufaturado, molécula de alto valor agregado.
(* Isoflavona é uma substância encontrada em alta quantidade na soja e que ajuda, por exemplo, no controle de colesterol e doenças coronárias. Por ter estrutura semelhante à do hormônio feminino estrogênio, pode ser aplicada em tratamentos para amenizar os efeitos da menopausa.)
A Amazônia é um exemplo fantástico. Nós detemos a maior biodiversidade do planeta. Aquilo é uma fonte de inspiração para produtos de alto valor agregado para a indústria farmacêutica, indústria de cosméticos, agroquímicos, fragrâncias e aí por diante, não para ficar só extraindo. Tem que ter um laboratório para você fazer pesquisa e dali tirar produtos de alto valor agregado, como fazem os países desenvolvidos.
Por que isso não acontece no Brasil?
É uma questão política mesmo.
Qual é uma dica sua para as mulheres que querem ser cientistas?
Eu era muito levada [na infância]. Minha mãe, uma portuguesa conservadora, queria que eu brincasse de boneca, que coisa mais sem graça. Eu ia para o portão de casa e via os meninos jogando bolinha de gude, jogando pião, ficava fascinada. Eu escapava, fugia, ia brincar com os meninos. Quando ela via, ela me puxava pela orelha: “Menina não pode brincar com menino!”.
Por mais que a gente esteja avançando, as brincadeiras dos meninos são mais de desenvolvimento cerebral, de associação lógica, do que as das meninas. Eu insisti para brincar com os meninos numa inocência, porque eu gostava de ver [as brincadeiras], sempre fui muito curiosa.
Fazer ciência é a coisa mais fascinante para uma mulher. Nós temos algumas características que propiciam que sejamos muito boas cientistas: poder de observação, poder de se concentrar e de se organizar. Se você faz e gosta, tudo o que se faz com paixão se faz bem, só depende de você, do seu intelecto.
O que é diferente do que as pessoas associam hoje a “poder” de cargo, para ser reitor, diretor, presidente, governador… Aí já começa um outro tipo de competição, que pode envolver o conhecimento. E aí, devido ao processo histórico, os homens são mais competitivos que as mulheres.
Isso não significa que você não é uma boa mãe, eu adoro meus filhos, sou uma mãe daquelas leoas, meus netinhos são apaixonados pela avó, mas não tem nada a ver uma coisa com a outra.
A gente tem que pensar nas crianças também. Penso que é muito importante que se prepare esse futuro, essa geração, para se fixar no país, que tem uma riqueza. O que se projeta para essas crianças com esse ambiente de pessoas que não têm juízo, um país esquizofrênico? As pessoas olham uma para a outra com cara de ódio, em vez de construir.
FONTE: UOL Notícias
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