No dia 25 de junho último, a comissão especial da Câmara dos Deputados que analisa a regulação do setor de defensivos fitossanitários aprovou o parecer que prevê mudanças importantes na legislação brasileira sobre agrotóxicos. A base é o Projeto de Lei 6.299/02, de autoria do senador Blairo Maggi, atual ministro da Agricultura. Um dos pontos mais polêmicos da proposta é a previsão de os pesticidas (nome indicado no parecer) serem liberados pelo Ministério da Agricultura mesmo se outros órgãos reguladores, como Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), não tiverem concluído análises sobre eventuais riscos.
A movimentação no Congresso reacendeu o debate sobre o uso dos agroquímicos em todo o país. Repercutiu nas redes sociais e na imprensa uma onda de manifestações de vários setores, como ONGs ambientalistas, institutos de defesa dos consumidores e entidades de pesquisa relacionada à saúde pública. As opiniões mais ruidosas são contrárias ao projeto já apelidado de “PL do Veneno”.
“A nossa oposição ao projeto não é ideológica. É científica”, defendeu o presidente da Comissão da Política Nacional de Redução de Agrotóxicos, Alessandro Molon (PSB), durante a sessão de votação do parecer na Câmara Federal. Ele denuncia que o PL irá permitir o registro de substâncias que podem estar associadas ao aparecimento de tumores, má-formação fetal e alterações genéticas.
“O objetivo do PL do Veneno é lucro! E os que lucrarem com esse absurdo certamente colocarão comida orgânica no prato de seus filhos”, reforçou Molon em uma rede social.
O deputado Luiz Nishimori (PR), que apresentou o parecer aprovado na comissão especial, também usou a internet para rebater as críticas e as “informações falsas” que vêm sendo divulgadas sobre o projeto. Logo após a aprovação do relatório, ele postou uma mensagem no Twitter afirmando que o PL 6.299 é “o melhor caminho para garantir a segurança de alimentos que chegam à mesa dos brasileiros”.
Fato é que a questão dos agrotóxicos no Brasil é historicamente complexa. Desde que a Lei 7.802/89 definiu e regulamentou o seu uso, vários projetos de lei foram apresentados no Congresso Nacional – a maioria por deputados da bancada ruralista, pressionados pela agroindústria.
Mortes no campo
Além da incerteza provocada pelo descompasso entre os que defendem a mudança na legislação e os que a rotulam como retrocesso está um problema agudo: o aumento dos casos de intoxicação e morte relacionados à exposição a agroquímicos.
Segundo o Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox), da Fundação Fiocruz, foram 3.337 casos registrados de intoxicação por agrotóxicos em uso agrícola no ano de 2015, com 97 mortes.
Oito anos antes, o Ministério da Saúde apontou, por meio do DataSUS, que 2.093 notificações foram registradas no Brasil.
Ainda que as duas instituições tenham metodologias diferentes de coleta de dados, os números surpreendem. E podem ser maiores. Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), 98% dos casos de intoxicação por agrotóxico no planeta não são notificados às instituições de saúde pública.
As tentativas de suicídio relacionadas à exposição a agrotóxicos também disparou no Brasil. Dados do Ministério da Saúde confirmam que em 2015 foram seis casos, contra 1.405 em 2017 – um aumento de 234%.
Há vários estudos que apontam que os agroquímicos podem afetar o sistema nervoso central do ser humano e são associados ao aparecimento de doenças como a depressão.
Os casos de intoxicação por agroquímicos crescem paralelamente ao aumento do seu uso no campo. Segundo o Censo Agropecuário de 2017, que teve a prévia divulgada há pouco mais de um mês pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 1,68 milhão de produtores rurais declararam ter usado defensivos agrícolas em seus estabelecimentos, número 21,2% maior que o de 2006 (1,39 milhão).
Informações do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para a Defesa Vegetal (Sindiveg) apontam que entre 2000 e 2015 a venda de agrotóxicos apresentou crescimento acumulado de 284% (saltou de 313.824 para 887.872 toneladas).
A soja foi o destino final das vendas de defensivos, com 52% do total. Detalhe: autor do “PL do Veneno”, Blairo Maggi também é conhecido como o “rei da soja”, além de ser considerado inimigo número um dos ambientalistas. Em 2005, foi o “vencedor” do prêmio Motosserra de Ouro, da ONG Greenpeace, por sua contribuição à destruição da Floresta Amazônica.
Fiscalizar é preciso
O Censo também identificou que hoje existem mais de 5 milhões de estabelecimentos agropecuários no país, perfazendo uma área total de 350 milhões de hectares. Nesse contexto, é indiscutível a necessidade de uma fiscalização cada vez mais eficaz, tendo em vista a dimensão territorial e o fato de a realidade do campo ser diferente do preconizado pela legislação.
O monitoramento do uso de agrotóxicos no Brasil é de competência da União, dos estados e municípios. A fiscalização federal de agroquímicos, informa o Ministério da Agricultura, é orientada e estruturada pela Coordenação Geral de Agrotóxicos e Afins – CGAA/DFIA/SDA. Anualmente, são estabelecidas metas para a realização da fiscalização de acordo com o estipulado no Plano Plurianual (PPA), que abrangem desde a fiscalização de estabelecimentos de produção/importação/exportação de produtos até coleta de amostras e estações credenciadas de pesquisa.
Ainda que haja muitos gargalos, como a quantidade insuficiente de técnicos para fazerem as fiscalizações, tendo em vista o alto número de estabelecimentos comerciais e rurais, revendedores e prestadores de serviço, há avanços a serem comemorados em algumas unidades da federação.
Minas Gerais, por exemplo, há anos vem se destacando no topo do ranking nacional de estados que mais realizam inspeções no setor de agrotóxico. Segundo Marcela Ferreira, da Gerência de Defesa Vegetal do Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA), órgão responsável pelas fiscalizações de agroquímicos no estado, atualmente existem 991 estabelecimentos comerciais registrados em Minas Gerais.
“Em 2016, foram realizadas 4.105 fiscalizações nesses locais. Em 2017, foram 4.535, sendo interditados 7.004 kg e 105.038 litros de agrotóxicos”, informa Marcela.
O estado tem 320 servidores que atuam neste tipo de fiscalização, número 77% maior do que no estado de São Paulo. No caso dos estabelecimentos comerciais são verificados controle de estoque, nota fiscal comprovando a origem do produto, receituários agronômicos, disponibilidade de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) e se os produtos comercializados são cadastrados no Ministério da Agricultura.
“Quanto às propriedades rurais, as infrações mais comuns são o armazenamento inadequado, a não realização da tríplice lavagem e a inutilização das embalagens, além da não devolução dos recipientes vazios no prazo estipulado”, destaca a fiscal.
O engenheiro agrônomo Décio Karam, da Embrapa Milho e Sorgo, destacou a importância de um acompanhamento mais frequente, principalmente do pequeno produtor rural.
“É muito comum, durante as visitas de orientação que fazemos a campo, encontrarmos produtores infringindo a lei, utilizando um mesmo tipo de agrotóxico para várias culturas. Esse é um dos motivos que contribuem para que alimentos avaliados pela Anvisa apresentem contaminação”, ressalta.
No caso das embalagens vazias, o descarte na natureza ainda é comum, mesmo o Brasil tendo uma das mais avançadas logísticas reversas de embalagens de agrotóxico do mundo. Dados do Instituto Nacional de Processamento de Embalagens Vazias (Inpev) apontam que 94% dos recipientes são reciclados. A previsão é que, em 2018, 44,7 mil toneladas sejam recolhidas.
Em seu “Dossiê Abrasco – Um Alerta sobre os Impactos dos Agrotóxicos na Saúde”, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva enumera algumas medidas mitigadoras sobre a utilização de defensivos agrícolas. Entre elas, a limitação de uso substâncias altamente tóxicas, a regulação do mercado e da propaganda e o desenvolvimento de produtos e tecnologias menos perigosas. Também ressalta a importância de intensificar a fiscalização da produção nas indústrias bem como a inspeção de produtos nos pontos de venda, uma vez que há regras quanto à aquisição desses produtos. A compra só pode ser realizada se um engenheiro agrônomo indicar, por meio de receita, qual produto deve ser usado e para qual cultura.
Outro ponto importante, ressalta a Abrasco no documento, diz respeito à informação. É importante que o produtor rural seja informado e esteja consciente sobre a forma correta de aplicar o agrotóxico na lavoura (saiba mais no link goo.gl/Q1u7JR), realizar a tríplice lavagem (para assistir ao vídeo produzido pelo Inpev, acesse goo.gl/gWqNXQ), usar os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) e dar destinação final adequada às embalagens. Para isso, é fundamental que os trabalhadores rurais sejam capacitados. E a população mais exposta e vulnerável monitorada, com atenção especial à saúde e ao amparo social.
Alternativas sustentáveis
Se por um lado há quem afirme ser impossível garantir o aumento da produção de alimentos sem o uso de agroquímicos, por outro há muitos que defendem o contrário. É o caso da consultora de projetos em agricultura alternativa Flávia Londres, da Articulação Nacional da Agroecologia (ANA).
“Diversas experiências desenvolvidas em todas as partes do mundo comprovam que os sistemas agroecológicos permitem a produção de alimentos em diversidade e quantidade suficientes para abastecer as populações do campo e da cidade. Ao contrário das monoculturas do agronegócio, que utilizam grandes extensões de terra para a produção homogênea de lavouras, destinadas principalmente à alimentação animal e à indústria, os sistemas agroecológicos combinam a produção de uma diversidade de itens para múltiplos usos, incluindo a alimentação das famílias produtoras e a comercialização”, afirma ela, que é engenheira agrônoma e mestre em Práticas em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Flávia também reforça a necessidade de uma política séria de distribuição de terras por meio da reforma agrária, acompanhada de incentivos para a promoção da agroecologia. “Ela permitiria que um grande número de pequenas e médias unidades de produção garantisse o abastecimento da população com alimentos diversificados e livres de veneno.”
O produtor de alimentos orgânicos João Gabriel Fries é um exemplo de como a agroecologia pode ser uma alternativa sustentável à produção sem uso de agrotóxico.
Ele tem uma área de 6,4 hectares na região de Rio Manso, a 72 km da capital mineira. Por meio de cultivo em canteiros sucessionais, com diversas espécies consorciadas, as plantas crescem juntas, beneficiando umas às outras.
“A partir de um único plantio, colho alimentos de um mesmo canteiro, em diferentes tempos. Temos quase um hectare de área cultivada em sistema agroflorestal, que produz banana, mamão, mandioca, inhame, gengibre, cúrcuma, cana-de-açúcar e vários legumes, cereais e hortaliças”, afirma. As colheitas são suficientes para fornecer diretamente ao consumidor final 60 kg de alimentos (cerca de 20 pedidos por semana) e para o sustento da família.
Na opinião do produtor, dois fatores impedem o crescimento do cultivo de orgânicos no Brasil. O primeiro é a combinação entre a política governamental de subsidiar a agricultura convencional com isenção de impostos sobre agrotóxicos. E incentivos fiscais e crédito para investimento em plantio de espécies agrícolas que são commodities, como milho e soja. “Isso favorece apenas as grandes companhias e latifundiários do agronegócio, em detrimento da agricultura familiar de origem sustentável e regenerativa”, garante João Gabriel.
O segundo fator é a falta de esclarecimento e envolvimento da grande maioria dos consumidores. “Distantes dos locais e das atividades agrícolas, eles seguem pagando baixos preços em alimentos produzidos com uso de produtos químicos nocivos à vida humana e à saúde do planeta, a partir de práticas agrícolas degradantes”, acrescenta.
Ele completa: “O que nos conecta é sermos constituídos e sustentados pelos elementos tirados dos alimentos. É preciso conscientizar todos. Afinal, todos nós pagamos o preço da destruição e da contaminação da natureza, que somos nós mesmos”.
#ChegadeAgrotóxicos
“Até quando iremos aguentar esse jogo pesado de interesses que nada tem a ver com o real desejo de se alimentar a população? Não podemos brincar com a saúde! Temos o direito de saber o que comemos. Diga não aos agrotóxicos!”
Marcos Palmeira, ator e agricultor orgânico
“Uma comida sem agrotóxico e cultivada de uma maneira sustentável e regeneradora é essencial para a perpetuação da vida humana na Terra. Comida sem veneno significa uma vida mais feliz, saudável e digna para todos!”
Bela Gil, chef de cozinha natural e apresentadora de TV
Como é a lei hoje
O texto atual nomeia com o termo “agrotóxicos” os produtos químicos usados no combate a pragas na agricultura.
A análise dos agrotóxicos que podem ser usados é feita por órgãos dos ministérios da Agricultura, da Saúde e do Meio Ambiente.
A legislação atual prevê que os órgãos federais devem realizar a avaliação para liberar novos tipos de agrotóxicos em até 120 dias (na prática, varia de cinco a oito anos).
São proibidos pela lei os agrotóxicos que, em pesquisas experimentais com animais, apresentaram substâncias que estão associadas à ocorrência de câncer, de má-formação fetal e de alteração do DNA.
O que pode mudar
Alteração do uso do termo “agrotóxico” para “produto fitossanitário” ou “produto de controle ambiental”.
As autorizações de registros e análises para novos produtos passarão a ser coordenados exclusivamente pelo Ministério da Agricultura, e não mais de forma compartilhada com a Anvisa e o Ibama.
Redução da burocracia para a liberação de agrotóxicos idênticos ou similares a outras já registrados no país.
Os 27 estados e o Distrito Federal não mais poderão restringir a distribuição, comercialização e uso de produtos autorizados pelo governo federal.
Criação de registro e autorização temporária para produtos registrados em pelo menos três (dos 37) países membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
O processo de liberação de novos produtos será reduzido para até dois anos.
O PL prevê a substituição a análise do perigo do agrotóxico por uma avaliação de risco.
Veneno na mesa
Em 2016, o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos de Alimentos (PARA) da Anvisa divulgou o resultado de uma análise de 12 mil amostras de alimentos no Brasil. Dessas, quase 20% foram consideradas insatisfatórias, com concentração superior de resíduos de agrotóxico ao limite permitido ou não autorizada para a cultura. O alimento que mais apresentou potencial de risco agudo (intoxicação em até 24h após o consumo) foi a laranja, com 12,1%.
Pl 6.299: ecos do debate
A FAVOR
“Queremos modernizar, estamos apresentando uma das melhores propostas para o consumidor, para a sociedade e para a agricultura, que precisa dos pesticidas como precisamos de remédios.”
Luiz Nishimori, relator do PL 6.299/2002 e deputado federal (PR-PR)
“Esse terrorismo que está sendo pregado é feito por pessoas que vivem na cidade e que não conhecem a realidade da agricultura. Gostaria que fossem administrar uma propriedade rural por um ano. Certamente, mudariam de opinião.”
Valdir Colatto, deputado federal (MDB-SC)
“Nós temos tecnologias novas, precisamos de uma legislação nova. Retrocesso é não estar abertos a novas tecnologias.”
Evandro Ronan, deputado federal (PSD-RR)
“Produtores de todo o Brasil estão apoiando o projeto. E isso não tem relação com multinacionais, como alguns sugerem. Estão aqui pelo direito de utilizar as mesmas substâncias que outros países já utilizam para competir de igual para igual no mercado internacional, além de estimular o crescimento da agricultura brasileira.”
Luis Carlos Heinze, deputado federal (PP-RS)
“Encontrei uma informação publicada pela Anvisa, em 2016, onde 99% de 12.051 amostras não contêm resíduos. Precisamos acabar com o mito de que o Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos. De 2007 a 2017, dos 84 mil registros de intoxicações somente 5% referem-se a agrotóxicos e 43% são por remédios, 0,7% diz respeito a uso. O restante é acidente ou suicídio.”
Sergio Souza, deputado federal (MDB-PT)
Contra
“Estão sendo propostas excessivas simplificações no registro de agrotóxicos, sob a justificativa de que o sistema atual está ultrapassado e de que não estão sendo atendidas as necessidades do setor agrícola. Mas, uma vez implantadas, tais medidas reduzirão o controle desses produtos pelo Poder Público, especialmente por parte dos órgãos federais responsáveis pelos setores da saúde e do meio ambiente, inviáveis ou desprovidos de adequada fundamentação técnica e, até mesmo, que contrariam determinação constitucional (art. 225, §1°, V).”
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), na Nota Técnica Nº 2/2018/CGASQ/CGFIN (Link: goo.gl/rJKc3g)
“As diretrizes das leis brasileiras atualmente em vigor, que tratam do registro, fiscalização e controle dos agrotóxicos, estão alinhadas com políticas adotadas internacionalmente de proteção à saúde e ao ambiente. O PL 6.299/2002, se transformado em lei, não contribuirá para a disponibilidade de alimentos mais seguros nem para o fortalecimento do sistema regulatório de agrotóxicos, não atendendo, dessa forma, aos interesses de quem deveria ser o foco da legislação: a população brasileira.”
Comissão Científica em Vigilância Sanitária (CCVISA), da Anvisa, na Moção Nº 5 (Link: goo.gl/rU86wH)
“As medidas propostas no PL representam enormes retrocessos no que se refere à adoção de medidas de proteção ambiental e proteção da vida, ocasionando prejuízos incalculáveis e irreparáveis para a saúde, o ambiente e a sociedade. (…) O PL também tem diversas omissões e ausências, como um sistema de informações que seja acessível para a sociedade em geral e disponibilize informações completas e atualizadas sobre os agrotóxicos comercializados.”
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em nota técnica publicada em seu site oficial (Link: goo.gl/pzRxR5)
“A homologação é contrária a princípios importantes da administração pública, como a indisponibilidade do interesse público e a indelegabilidade do poder de polícia. Não pode o Estado renunciar aos seus mecanismos de avaliação e controle prévio de substâncias nocivas ao meio ambiente e à saúde, mediante sua substituição por mero ato homologatório de uma avaliação conduzida pelo particular, distante do interesse público.”
Ministério Público Federal, na Nota Técnica 4CCR nº 1/2018 (Link: goo.gl/bcgX5B)
Atentado à infância e à vida
Doutora em Geografia Humana e professora do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), Larissa Mies Bombardi lançou em 2017 o “Atlas Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia” (Link: goo.gl/6bDzk8). Trata-se de um levantamento sem precedentes sobre o consumo do agrotóxico no Brasil que levou três anos para ser finalizado. Em entrevista à Ecológico, a pesquisadora alerta para o caos que a aprovação do PL 6.299 pode provocar e aponta dados alarmantes do estudo:
Qual a situação/posição do Brasil no que diz respeito ao mercado e consumo de agrotóxicos em comparação com a União Europeia (UE)?
O Brasil é o maior consumidor mundial de agrotóxicos. Há estados, como Mato Grosso e São Paulo, em que a média de uso é de 12 a 16 kg por hectare. Na Bélgica, por exemplo, é de 2 kg. Cerca de 30% dos agrotóxicos utilizados no Brasil são proibidos na UE. E dos 10 tipos mais usados aqui, dois são proibidos lá. Um deles é o acefato, que passou por um processo de reavaliação no Brasil em 2013, mas continua sendo autorizado para uso em culturas como feijão, amendoim, couve e maçã. Se compararmos o nível de resíduos permitidos no Brasil com os da UE, a diferença é abissal. Temos dois exemplos emblemáticos. No caso do feijão, o Brasil permite um nível de resíduo do agrotóxico malathion 400 vezes maior do que na Europa. O outro é o do glifosato, o herbicida mais vendido no Brasil. Permitimos um nível de resíduo na soja 200 vezes maior do que na UE. Na água potável, ele é 5.000 vezes maior.
E quanto às técnicas de aplicação do agrotóxico?
Na UE, a pulverização aérea é proibida desde 2009. No Brasil, grande parte é feita assim. Se a legislação fosse respeitada e a fiscalização mais eficaz, isso jamais aconteceria. Há um limite de 500 metros de distância de aglomerações urbanas, escolas e cursos d’água que deveria seria ser preservado. A prática é uma aberração e também acontece ao arrepio da lei. Já é um problema o Brasil permitir a pulverização aérea, e outro ainda maior é o fato de ela não ser fiscalizada. Também há uma demanda por fiscais, que está muito defasada. Em São Paulo, há apenas 72 fiscais para todo o estado. Não há possibilidade alguma de controle…
Como a possível aprovação do PL 6.299 pode potencializar o uso de agrotóxicos e, consequentemente, impactar o meio ambiente e a saúde humana?
O PL vai rasgar um pouco do princípio de precaução que há na Lei 7.802/89. E fará isso com a possibilidade de se aprovar, por um período temporário, o registro de agrotóxicos que são autorizados em três países da OCDE. É o caso de Chile, Turquia e México, que têm uma inserção parecida na economia mundial como a do Brasil e não são exemplos bons para se basear na aprovação de registros temporários de agrotóxicos sem avaliação. Isso nos vulnerabiliza. Na atual lei, se um produto for indicado pela comunidade científica nacional ou internacional como causador de câncer, má-formação fetal ou afete o sistema nervoso, ele pode ser reavaliado e banido. Na nova proposta, se determinado produto apresentar “risco inaceitável” nesses mesmos casos, ele pode vir a ser proibido. Essa expressão “risco inaceitável” abre uma janela, inclusive jurídica, que não se fecha. Como discutir o que é aceitável ou não do ponto de vista do câncer? Enxergo com temeridade e espero que isso não aconteça.
Citaria algum dado relevante no que diz respeito à contaminação por agrotóxico no Brasil?
Dois dados me chocaram durante o levantamento. Um deles foi o do número de suicídios envolvendo intoxicações: 40% dos casos notificados são relacionados a pessoas que tentaram suicídio ingerindo agrotóxico. Outro foi a faixa etária dos intoxicados: 20% são crianças e jovens de até 19 anos. Isso é um atentado à infância e à vida.
Fonte: Revista Ecológico