Medida publicada no Diário Oficial tira atribuição da Funai e Incra e não define como serão feitas as identificações e demarcações de terras. Serviço Florestal Brasileiro também foi para a pasta.
Entidades voltadas à defesa de indígenas, quilombolas e de recursos naturais ouvidas pelo G1 criticaram a medida publicada no Diário Oficial da União na noite desta terça (1º) que transfere para o Ministério da Agricultura a responsabilidade sobre a demarcação de terras indígenas e quilombolas.
A medida também leva para o Ministério da Agricultura a gestão do Serviço Florestal Brasileiro. O órgão tem entre suas funções o cadastro ambiental rural, a recuperação da vegetação nativa e florestal, a proposição de planos de produção sustentável e o apoio aos processos de concessão florestal.
A MP não esclarece se os critérios para demarcação de terras serão seguidos ou alterados.
Sobre a medida, os especialistas e entidades apontam que:
- Um dos problemas com a nova medida é a centralização, que afeta a execução: as atribuições de demarcação de terras e o Serviço Florestal, que faz o cadastro ambiental rural, estão todas sob um mesmo comando e não há técnicos e estrutura na pasta da Agricultura para gerir essas atribuições, diz Nilo D’Ávila, diretor de campanhas do Greenpeace Brasil
- Há incerteza sobre como as demarcações serão feitas. A cessão de terras segue critérios técnicos e não tem por finalidade instituir um proprietário, porque as terras são da União, mas a MP não esclarece se estes critérios serão seguidos, diz Lucia Helena Rangel, antropóloga e assessora do Conselho Indigenista Missionário (Cimi)
- Pode haver escalada de violência no campo. Em 2018, os conflitos por terra foram os responsáveis por ao menos 24 assassinatos – 5 deles de lideranças indígenas e quilombolas. Agora, ruralistas e mineradoras podem se sentir legitimados para avançar sobre essas terras, mas os povos que as habitam não vão ceder, fala Ruben Siqueira, membro da coordenação executiva nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT)
- A medida contém conflito de interesses, porque coloca os direitos das minorias (indígenas e quilombolas) subordinados ao agronegócio, informou em nota o Instituto Socioambiental.
Agora, as ações destas áreas estarão sob responsabilidade da ministra da Agricultura Tereza Cristina (DEM-MS), que foi presidente da bancada ruralista no Congresso.
Para o presidente Jair Bolsonaro, as terras demarcadas são muito extensas em relação à população que as habita e indígenas e quilombolas devem ser integrados à população.
“Mais de 15% do território nacional é demarcado como terra indígena e quilombola. Menos de um milhão de pessoas vivem nestes lugares isolados do Brasil de verdade, exploradas e manipuladas por ONGs. Vamos juntos integrar estes cidadãos e valorizar a todos os brasileiros” – Jair Bolsonaro, presidente
O que dizem as entidades e especialistas:
Funai, em nota:
“A Funai informa que respeita a decisão do novo governo e continuará a cumprir a missão institucional de proteger e promover os direitos dos povos.”
Instituto Socioambiental, em nota:
“A definição do Ministério da Agricultura como órgão responsável pelo reconhecimento de territórios dos povos indígenas e comunidades quilombolas representa inaceitável e inconstitucional conflito de interesses, mediante a subordinação de direitos fundamentais dessas minorias aos interesses imediatos de parcelas privilegiadas do agronegócio, parte diretamente interessada nos conflitos fundiários atualmente existentes, ainda mais se considerado que o dirigente responsável pelas temáticas é representante da UDR [União Democrática Ruralista] e dos grandes proprietários de terra. Isso indica que a estratégia de estado não será orientada para o ordenamento do território e para a solução de conflitos, mas para a concentração fundiária e a submissão do interesse nacional a interesses corporativos.”
Lucia Helena Rangel, antropóloga, professora da PUC-SP e assessora em antropologia do Conselho Indigenista Missionário (Cimi)
“Os povos indígenas fazem parte de uma das populações mais vulneráveis do país. São os mais ameaçados. Isso [a transferência da demarcação de terras indígenas para a Agricultura] acaba com o sentido constitucional de que é dever do Estado proteger e executar as demarcações, porque agora estará a cargo de uma pasta que tem conflito de interesses com a demarcação. O governo está indo para a destruição dos direitos dos indígenas.”
“A cessão de terras segue critérios técnicos e não tem por finalidade instituir um proprietário, porque as terras são da União. Antes de uma terra ser demarcada, é estudada a história daquele povo, como vivem os indígenas, se o grupo foi deslocado, como foi deslocado e este estudo vai estabelecer quem é o “dono” daquela terra, sem ser o proprietário. Desde o decreto 1755/96, que estabeleceu o direito ao contraditório, os proprietários têm entrado com recurso contra as demarcações, mas nenhuma ação saiu vitoriosa até agora.”
Nilo D’Ávila, diretor de campanhas do Greenpeace Brasil
“Nós entregamos tudo o que diz respeito a regulação fundiária a uma entidade só [Ministério da Agricultura]. E sabemos das limitações do Ministério da Agricultura para gerir. Faltam fiscais, como pudemos ver na crise da carne. Existe [agora] uma estrutura de gestão capaz de assumir essas responsabilidades? A terra indígena é um bem da União, com usufruto do povo que a habita. A demarcação de terras indígenas serve para fazer justiça com esses povos, é um direito anterior. Não se trata de propriedade privada. Isso vai tornar a gestão pública um caos, porque dilui as atribuições em diferentes entes da federação.”
Ruben Siqueira, membro da coordenação executiva nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT)
“Políticas e órgãos de proteção e promoção dos povos nativos e comunidades tradicionais e do meio ambiente são identificados como obstáculos a este programa [de governo]. Para serem exploradas as riquezas minerais, água, biodiversidade, fontes de energia sustentáveis, terra agricultável – das maiores concentrações no planeta – [eles] não podem se submeter às restrições constitucionais estabelecidas pela Constituição Federal de 1988. A crise maior que vivemos é de democracia.”