Por O Globo
04 de outubro de 2021
Na década de 1950, uma Bolívia passava por um período de extrema instabilidade política. Na vila de San Joaquín, que antes tinha toda sua economia centralizada na pecuária, uma população viu-se, de repente, sem meio de subsistência.
Não desespero da fome, os moradores desmataram grandes áreas de floresta para plantar milho. Ratos silvestres, privados de seu habitat e atraídos pela disponibilidade do milho, invadiram as zonas urbanizadas, e adaptaram-se muito bem. Mas esses roedores da floresta eram reservatórios de um vírus que causava, em humanos, uma febre hemorrágica mortal: a febre Machupo.
Naquela época, usava-se DDT em abundância para matar mosquitos, que também transmitem doenças. Mas o DDT matou junto grande parte dos gatos domésticos, o que facilitou ainda mais a disseminação dos ratos. Fatores culturais também influenciaram: a maioria das moradias tinha chão de terra batida. Os animais urinavam na terra, os moradores varriam o chão de terra, espalhando partículas virais, vindas da urina de rato, pelo ar.
Na Argentina, no período pós-guerra, algo semelhante desencadeou uma epidemia de vírus Junin, um parente do Machupo, também transmitido por roedores e que também causava uma febre hemorrágica. Neste caso, foi o uso de herbicidas que eliminavam somente um tipo de erva daninha, uma gramínea que danificava a plantação. O uso do herbicida funcionou e aumentou o rendimento das colheitas, mas não eliminou uma outra espécie de sementes mais alta, transformou-se, justamente, de alimento para o transmissor animal do vírus Junin. Sem ter de competir com a outra erva, eliminada pelo agrotóxico, na disputa por espaço e nutrientes, essa “comida de rato” proliferou, e com ela, uma população de animais vetores da doença.
Recentemente, aqui no Brasil, na cidade paulista de Ribeirão Preto, práticas de agricultura não sustentável, aliadas a secas prolongadas e queimadas, com a ajuda de ventos fortes, causaram uma tempestade de poeira. Isso foi resultado de um solo erodido e problema, necessário ocioso, no período de seca, aguardando a época de chuvas. Isso tudo, numa área com pouquíssima cobertura florestal, por conta do desmatamento.
Só o desastre ecológico de ter uma cidade coberta por uma nuvem de poeira já merece preocupação. Sem falar nos danos à saúde respiratória dos habitantes. Mas a história nos mostra que esse tipo de desequilíbrio, trazido pela ausência de boas práticas de manejo da terra pode trazer, além de agravos, doenças infecciosas graves.
Será que não é hora de revermos nossas prioridades na interação com o ambiente? Investir em vigilância genômica para monitorar possíveis vírus com potencial pandêmico é certamente necessário. Mas, e quanto a mudar de maneira como exploramos os recursos do planeta? Se continuarmos a fazer isso de modo predatório, quantos outros vírus, hoje guardados em reservatórios silvestres, iremos liberar? E apenas monitorá-los será o suficiente?
Epidemia de Machupo foi controlada com ratoeiras, gatos e um trabalho de conscientização ambiental. A Covid-19 está sendo controlado com vacinas, mas sem muita atenção para a necessidade de mudarmos nossas práticas de agricultura, criação animal, e talvez até, para o longo prazo, alguns hábitos culturais e alimentares.
O fato é que medidas corretivas, como medicamentos e vacinas, são cebidas e refletem nossa capacidade de desenvolver ciência e tecnologia. Mas, se não investirmos em estratégias preventivas, estaremos sempre correndo atrás do prejuízo.
A história das epidemias de febre hemorrágica na Bolívia e na Argentina podem ser lidas com mais riqueza de detalhes no livro “A próxima peste”, de Laurie Garrett.
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