Para chegar à aldeia dos índios da etnia Tembé, segui primeiro até Capitão Poço, uma das cidades fundadas para integrar e “ocupar” a Amazônia, a cerca de 260 km de Belém, no Pará. Desde o descobrimento do Brasil, já havia conflito entre índios e colonos. E ele se mantém até hoje, em pleno coração da Floresta Amazônica, por um motivo ainda latente: a ocupação de terras.
Maria Paulina, mãe do cacique da aldeia, Naldo, relembra os tempos antigos. Conta que os Tembés, etnia herdeira da tradição e da língua Tupinambá, costumavam se reunir à noite para contar e ouvir histórias da tribo. As crianças não se misturavam aos adultos, ficavam por perto, brincando.
“A gente passava a noite conversando, fazia fogueira, comia mingau de milho e de arroz. Ninguém comprava nada fora, carne de boi ou outras coisas. Tudo vinha do mato. A gente mesmo caçava e pescava.” Os tempos, ela descreve, eram de fartura, com muitos peixes no Rio Guamá e no igarapé. “A gente nem sabia que existia frango de granja.”
Cláudio Tarumbé, da mesma aldeia, é outro a relembrar os tempos em que tudo vinha do mato. “Não tinha como ir comprar nada na cidade. O nosso café da manhã era um caldo de caça e tinha também comida moqueada (feita em grelhas de madeira). Acho que, por isso, a gente tinha mais saúde. Era difícil alguém adoecer e os mais velhos custavam a morrer. Hoje não. A gente tem açúcar, café, sabão e outras coisas. Mas, por outro lado, temos também mais doenças.”
A parteira Francisca dos Santos diz que a maioria da tribo só recorre a remédio de farmácia depois de ser “medicada” por ela. “Primeiramente, eles vêm aqui. Se eu não der jeito, aí eles saem e buscam recurso fora.” Andando pela região, é fácil perceber que boa parte da floresta só está preservada graças à presença desses povos nativos.
Eles têm papel fundamental em sua preservação, cuja dinâmica e equilíbrio ecológico estão diretamente associados às mudanças climáticas ocorridas no planeta. Pesquisador-sênior do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), Paulo Barreto explica que o desmatamento na região é um problema histórico. Mas se agravou bastante em razão da “estratégia” de ocupação liderada pelo governo federal, na década de 1970.
“A partir de então, houve uma aceleração do desmatamento que era, inclusive, incentivado pelo governo. Se alguém desmatasse uma área, ganhava terreno equivalente ao dobro dela. Para ganhar 100 hectares, bastava desmatar 50”, compara.
Tensão histórica
Os Tembés e outros povos indígenas habitam o litoral da Amazônia desde o início da colonização portuguesa. “Era preciso proteger o litoral e também agenciar mão de obra escrava. Diante dessas necessidades, consolidou-se o processo conhecido como descimento: os colonizadores entravam nas aldeias e capturavam os índios para serem escravizados”, relata Ivânia Neves, mestre em antropologia da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Desde então, a relação entre Tembés e brancos, naquela região, é marcada pela tensão. Incentivados pela própria Fundação Nacional do Índio (Funai), criada em 1967, e pelo governo militar, fazendeiros “avançaram” sobre terras indígenas. “Hoje, embora os Tembés já tenham ganhado na Justiça o direito de reaver suas terras, boa parte delas está ocupada por posseiros, colonos e até mesmo traficantes de drogas”, ressalta Ivânia.
“Antes, tudo isso aqui perto da gente era mata. Tinha canto de ave, muito guariba (macaco) e também onça urrando à noite. Agora, você não vê nada disso mais, porque o branco veio e destruiu tudo”, lamenta Cláudio Tarumbé.
As violações aos direitos dos indígenas são graves na região, conforme destaca o procurador da República Daniel Azeredo Avelino. “Avançamos razoavelmente bem na demarcação, mas, no que se refere à efetivação das demarcações, várias terras ainda são alvo de furtos de madeira, inclusive com ameaça à vida dos índios.”
Há também muitas terras indígenas ainda não totalmente desocupadas, situação que se soma ao impacto de grandes empreendimentos previstos para a região Oeste do Pará. Entre eles, a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, aumentando a pressão tanto sobre a natureza quanto sobre as comunidades locais. “Isso sem contar a histórica falta de assistência em relação à saúde e educação”, pontua o procurador.
E nesse contexto da demarcação de terras indígenas é impossível não avaliar o papel da Funai. Em campo, a impressão que se tem é que a fundação simplesmente “parou” no tempo. Mas o coordenador-técnico da Funai, Juscelino Bessa, defende as políticas em benefício dos índios e cita avanços em relação à demarcação.
Segundo ele, em um país de dimensões continentais como o Brasil, a Funai conseguiu regularizar 13% de seu território como terras indígenas. “Não há exemplo similar no mundo. Nenhum outro país teve a preocupação de assegurar terras e tempo necessário para os índios entenderem todos os processos e códigos da nossa sociedade. Além, ainda, de terem condições de se defenderem. A Funai nunca teve apoio de qualquer governo. Sempre trabalhamos marginalmente.”
Parceria e solidariedade
Cacique dos Tembés, Naldo afirma nunca ter visto um processo de reconhecimento de terras demorar tanto. “Foi uma eternidade, levou 40 anos. Isso custa uma vida inteira, com muitos confrontos pra gente conseguir marcar posição. Hoje, somos considerados os indígenas mais complicados de se conversar. Mas não vemos as coisas assim; sentimos que estamos brigando pelo que é nosso direito. Se é um direito, por que não é cumprido e respeitado?”, questiona.
Na companhia de alguns Tembés, eu visitei uma área invadida que foi, posteriormente, reintegrada à aldeia. “Eles (os invasores) financiavam munição, bebida e carne para juntar multidão e confrontar a gente. Hoje, uma parte dessas pessoas reconhece que nós merecemos essas terras. Também prestamos solidariedade a eles, mostrando quem somos. Não temos condição de ficar brigando todo santo dia e vivendo nesse inferno, para defender o que é nosso”, desabafa Naldo.
A saída encontrada pelo Tembés foi fazer uma parceria com colonos. Isso permitiu aproveitar de forma produtiva a área que havia sido invadida, com índios e posseiros trabalhando juntos na criação de gado. Ralfemarlon Oliveira, um dos responsáveis pela Fazenda Mejer, conta que a parceria encerrou os conflitos. “Graças a Deus, está tudo tranquilo. Não teve mais nenhum conflito entre índio e colono. Colono sabe que a área é deles e vem respeitando.”
Floresta monitorada
Na companhia do cacique Naldo também conheci as tecnologias que os índios usam para monitorar a floresta. Radios-transmissores fixados nas árvores captam os sons da mata com raio de alcance de até 2 km. Os dados registrados são transmitidos via internet, indicando hora e local das ocorrências de invasão à floresta. O sistema é útil, por exemplo, para captar sons de motosserras em ação. “A gente fica sabendo de tudo. É bom também, porque assim a polícia não pode dizer que estamos mentindo. As denúncias ficam todas registradas. Só que a Justiça não está agindo”, reclama Naldo.
Enquanto o desmatamento segue, os índios relatam que o clima na região está mais seco. As oscilações climáticas são recentes, segundo eles, e claramente percebidas no dia a dia. “Com certeza está muito mais quente. Antes, era bem fresquinho mesmo. Hoje, a gente fica até agoniado com o calor”, relata Cláudio Tarumbé.
“A floresta é carbono, a estrutura da árvore também. Quando há queimada, ocorre a emissão do gás carbônico, que se concentra na atmosfera, provocando o aquecimento global. Essa é uma preocupação crescente. Hoje se fala mais em perda de floresta por causa de gás carbônico do que por biodiversidade. A temperatura de fato aumentou”, salienta Paulo Barreto, do Imazon.
Um ponto positivo no processo de controle do desmatamento, segundo Barreto, foi a criação de áreas protegidas, que incluem unidades de conservação, como parques e reservas naturais, além de terras indígenas. “O desmatamento nessas áreas é muito menor do que fora delas. Vários estudos comprovam a eficácia dessas unidades”, frisa o pesquisador. “Se não fosse a presença indígena, não teríamos mais floresta. Se já há tanta devastação mesmo com toda a resistência desses povos, imagine sem eles?”, complementa a antropóloga Ivânia Neves.
Essa resistência fica ainda mais clara no depoimento de Cláudio Tarumbé: “Vivemos em áreas protegidas, dando nossa vida para preservar a floresta. Mesmo com os impactos ambientais e essa questão de mudança climática, a gente nota que valeu a pena o nosso esforço de defender tudo aqui.”
Do ponto de vista acadêmico, são muitos os estudos que atestam a importância dos povos indígenas como ‘barreira’ ao desmatamento. Graças ao profundo conhecimento do ecossistema florestal, eles precisam deixar de ser vistos como empecilho ao desenvolvimento. E passarem a ser reconhecidos como verdadeiros guardiões e peças-chave na promoção do uso equilibrado das florestas.
Afinal, o avanço na demarcação e proteção dos territórios indígenas está diretamente relacionado ao nosso sucesso – ou fracasso – na luta pela preservação da Floresta Amazônica e no combate ao aquecimento global.
Leia na próxima edição: Barragens – a tragédia da mineração em Mariana (MG).
Descoberta estarrecedora
“Muitos dizem que índio não trabalha, é preguiçoso, só serve para fazer bagunça e ficar pedindo coisas. Não é verdade. Aprendi isso em 2014. Em fevereiro daquele ano, cerca de 40 caiapós, pintados para a guerra e armados até os dentes, invadiram a sede do Ibama. Vieram aqui reclamar que estavam sendo acusados de desmatar, mas afirmaram que quem estava fazendo isso eram os madeireiros.
Três meses depois, eu e uma equipe tática do Ibama, fortemente armada, chegamos à região de Castelo dos Sonhos, distrito de Altamira. Lá, encontramos um sistema de rádio entre as aldeias, usado para monitorar as áreas indígenas e a ação dos madeireiros.
Em três dias, desmontamos cinco acampamentos. E descobri algo estarrecedor: os desmatamentos e acampamentos indicados pelos índios não constavam nos sistemas de alertas dos nossos satélites.
Se criarmos uma forma de remunerar os índios por protegerem a floresta, começaremos a resolver o problema do desmatamento. Eu não preciso estar lá, porque o índio está; e ele enxerga melhor do que o satélite.
O estado brasileiro tem de querer proteger a Amazônia. De nada adianta eu trabalhar aqui, enquanto grandes forças políticas se empenham em abrir rodovias no meio da floresta. A rodovia, todos sabem, é a espinha de peixe para a ocupação ilegal, a grilagem de terras e o desmatamento.”